Letzte Aktualisierung:  30. Oktober  2007, PK

[Zurück zur Bibliographie von Peter Knauer]



TEOLOGIA-DA-PALAVRA-DE-DEUS E CRISTOLOGIA


Peter Knauer SJ

 
Resumo: A fala de “Palavra de Deus” não é evidente no sentido de entendê-la “por conta própria”. Pois não há objeção maior contra a fala de “Palavra de Deus” do que o significado da palavra “Deus”. No entanto, a mensagem cristã se dá a entender a si mesma pelo seu conteúdo. O conteúdo da mensagem cristã explica sua pretensão de ser “Palavra de Deus”. A noção de “Palavra de Deus” representa voltar-se de Deus ao mundo que apenas é possível ser afirmado trinitariamente: o mundo é assumido no amor do Pai ao Filho o qual é o Espírito Santo. Por causa desse amor de Deus não ter sua medida no mundo ele não pode ser deduzido do mundo. Dele somente sabemos por meio da encarnação do Filho. O Filho de Deus assumiu natureza humana para nos dizer o amor de Deus em uma palavra humana. Dessa maneira, a Palavra de Deus realmente é palavra humana cuja verdade, porém, é divina. Há um paralelo estrutural preciso entre “teologia-da-Palavra-de-Deus” e cristologia (bem como eclesiologia).

Abstract: The talk of “Word of God” isn’t self-evident in the sense of understanding it by oneself. There is no greater objection against speaking of “Word of God” than the meaning of the word “God”. But the Christian message makes itself understood by its content. The content of the Christian message explains its pretension to be “Word of God”. The term “Word of God” means God’s turning himself to the world which is only explicable in Trinitarian way. The world is assumed in the love of the Father for the Son which is the Holy Spirit. Because this love of God doesn’t find its measure in the world it can’t be read from the world. We know of it only because of the incarnation of the Son. The Son of God assumed human type in order to tell God’s love in human words. So Word of God is real human word whose truth however is divine. There exists a precise structural parallel between “theology-of-Word-of-God” and Christology (as well as ecclesiology).

Publicado: Kairós – Revista Acadêmica da Prainha, Ano III/2, Julho/Dezembro 2006, 255–272;
(Traduzido do alemão por: Michael Kosubek, Graduado em Teologia; Prof. do ITEP/ICRE, de:
Wort-Gottes-Theologie und Christologie, in: Günter Riße [Hg.], Zeit-Geschichte und Begegnungen – Festschrift für Bernhard Neumann zur Vollendung des 70. Lebensjahres, Bonifatius Paderborn 1998 [ISBN 3-89710-054-1], 186–198.)

 
 
O conceito “Palavra de Deus” aparece em quase toda celebração cristã. Ele continua sendo utilizado e referido sem ser problematizado. Mas ele causa dificuldades para alguns teólogos e até os deixa perplexos. Por exemplo, segundo a Teologia Fundamental de Heinrich Fries todos os conteúdos teológicos podem ser resumidos da melhor maneira pelo conceito formal de “revelação”. Ele prefere este conceito ao de “Palavra de Deus”, que ele considera menos explicativo: “É a palavra que Deus mesmo fala – e como isso é imaginável? -, ou é a palavra autêntica que é falada sobre Deus? Mas, chega a ser expresso suficientemente, no conceito da palavra, que, na fé e na teologia, se trata de atos, de história, de eventos e pessoas?” (
Fries, Heinrich. Fundamentaltheologie. Graz/Austria 1985,154). Nessas perguntas se resume o motivo pelo qual, no fundo, muitas vezes não se sabe lidar bem com o conceito “Palavra de Deus”. Ele não é abstrato demais e leva a uma intelectualização da fé que exclui a experiência como crucial?

Também para o teólogo protestante Wolfhart Pannenberg o conceito de “Palavra de Deus” parece igualmente problemático. Por essa razão, ele acha que “antes se precise falar de uma especificação da representação da Palavra de Deus pelo conceito da revelação do que o inverso” (
Pannenberg, Wolfhart. Systematische Theologie, Band I, Göttingen 1988, 280.

De fato, porém, em um sentido completamente diferente o conceito de “Palavra de Deus” é menos evidente do que freqüentemente se supõe.


Em seguida se procura explicar a não-evidência da “Palavra de Deus”. Habitualmente, se entende por “evidente” aquilo que se compreende mais ou menos sem problema, “por conta própria”, e para a compreensão do qual não se precisa de mais auxílios. Acontece, no entanto, que falar em “Palavra de Deus”, nesse sentido, de modo algum é evidente, o que deve ser demonstrado.


A partir daí se pretende elucidar como a “Palavra de Deus” é, sim, autoevidente num sentido completamente diferente: apenas ela pode evidenciar-se a si mesma. Portanto, procura-se demonstrar que a pretensão da mensagem cristã ser “Palavra de Deus” somente se compreende e responde a objeções por meio de seu conteúdo concreto.


Por “palavra” se entende o modo de comunicação entre seres humanos. O falar em “Palavra de Deus” apenas deixa de ser problemático sob a pressuposição de que é o próprio Deus que vem ao nosso encontro como ser humano.


É apenas à primeira vista que parece se explicar uma dificuldade por outra maior. A mensagem cristã também explica como se pode falar coerentemente de uma encarnação de Deus? Conforme o dogma cristológico, ser humano e ser divino de Jesus hão de ser relacionados “sem mistura e sem separação”. Apenas se isso for possível de ser explicado, tudo o mais se tornará simultaneamente compreensível.


Comprovar-se-á que nossas afirmações em relação à “Palavra de Deus” têm a mesma estrutura que as afirmações diretamente cristológicas. Como afirmamos de Jesus o verdadeiro ser homem e o verdadeiro ser Deus, de uma forma muito semelhante dizemos da “Palavra de Deus” que é uma palavra real, humana, criada, mundana e histórica, e que, ainda assim, a verdade dessa palavra é divina, eterna e incondicional. Palavra e verdade não estão aqui separadas e sim mutuamente relacionadas. Antes de tudo, a verdade divina dessa palavra não é diminuída ou relativizada pelo fato de ser transmitida na simples palavra da comunicação humana. Também o anúncio de fé hodierno se entende, com todo direito, como Palavra própria de Deus. Nós apenas temos acesso a Jesus mesmo a partir da certeza que o anúncio hodierno de fé provoca no nosso coração.


As proposições cristológicas se tornam compreensíveis somente quando entendidas a partir do significado da “Palavra de Deus”, ou seja, quando já o próprio evento de “Palavra de Deus” for concebido como mistério de fé.

 

I.   A não-evidência de falar em “Palavra de Deus”

A mensagem cristã vem ao nosso encontro afirmando ser “Palavra de Deus”. Ela pede ser ouvida porque se refere a um problema fundamental de todos os seres humanos: O que impede a nós, seres humanos, agirmos de forma humana ao invés de desumana? Em que consiste a raiz de toda desumanidade e o que é capaz de empatar essa raiz?

Nós seres humanos somos vulneráveis e efêmeros. Por isso temos medo por nós próprios e procuramos nos conservar a todo preço. Esse “medo da morte” é, segundo a mensagem cristã, a raiz de todos os pecados singulares (cf. Hb 2,15). A mensagem cristã, então, afirma poder “redimir” os seres humanos do poder do medo por si próprios por transmitir a certeza da comunhão com Deus, que é mais forte do que todo medo da morte.


Quem se deparasse com tal mensagem que afirma de si ser “Palavra de Deus”, pela primeira vez, e quisesse entendê-la, haveria de colocar essas duas perguntas em primeiro lugar: Quem é “Deus” cuja palavra a mensagem pretende ser? E, como essa mensagem ainda pode falar de Deus se, ao mesmo tempo, costuma dizer que ele não se subordina aos nossos conceitos humanos?


A mensagem cristã introduz o significado da Palavra “Deus” pela proposição que toda realidade de nossa experiência seja “criada do nada”. Tal proposição não apenas se refere ao início do mundo. Antes quer dizer: se pudéssemos eliminar nosso ser criado, então, nada sobraria de nós. No lugar de “ser criado do nada” se pode dizer também “ser inteiramente criado”. Apenas falamos realmente de Deus se captamos que simplesmente tudo no nosso mundo é de um modo, que não seria sem Ele. Deus é sem quem nada é. Mas desse Deus vale dizer que “habita uma luz inacessível, que nenhum homem viu, nem pode ver” (1Tm 6,16). Ele não é apenas de um modo que nada maior do que ele pode ser pensado, e sim ele é maior do que tudo que nós sequer podemos pensar (Anselmo da Cantuária).


Portanto, nós não sabemos primeiro quem é Deus para depois, num segundo passo, dizer que ele criou o mundo; mas a única possibilidade de falar coerentemente de Deus consiste em reconhecer que nada no mundo jamais poderia ser sem ele.


Também não podemos, do mundo, inferir a Deus, mas sim podemos inferir do mundo à sua criaturalidade da seguinte maneira: o mundo, na sua realidade própria de união de oposições contraditórias apenas se torna possível de ser descrita sem contradições se afirmamos dele “ser inteiramente relacionado a ... / inteiramente diferente de ...”. O Para-Onde dessa relação com a qual o mundo funde completamente, nós o denominamos “Deus”.. Mas então, o mundo não é explicado a partir de Deus, como se ele fosse, bem dizer, o ponto final de nossa síntese metafísica, e sim o mundo é somente explicado por meio de sua criaturalidade que é seu caráter de referência a Deus.


A criaturalidade, enquanto tal, não pode ser objeto de fé e sim de razão. Pois se somos criados, o somos justamente na medida em que nos é conferido o ser. Nosso ser e nosso ser criado simplesmente são idênticos. Se nosso próprio ser é acessível à razão, então também nosso ser criado, se é que este realmente existe, há de ser acessível à razão. Tudo o que é diferente de Deus é mero mundo e não é crido e sim objeto de nossa experiência e de nosso saber (objeto de fé apenas será a autocomunicação de Deus, que não tem sua medida no mundo).


Nosso pensar sistemático, assim, permanece inteiramente do lado do mundo. Deus mesmo não é parte do nosso sistema. Por isso, é principalmente impossível deduzir de Deus qualquer coisa existente no mundo.


De acordo com isso, Tomás de Aquino escreve: “Como Deus se encontra fora de toda a ordem criada e todas as criaturas estão relacionadas a ele, e não o contrário, então se manifesta que as criaturas se relacionam realmente a Deus. Em Deus, porém, não há nenhuma relação real dele às criaturas e sim apenas uma relação pensada (secundum rationem tantum), justamente na medida em que as criaturas se referem a ele” (S. th. I q13 a7 c).


Podemos falar de Deus, por conseguinte, somente de forma análoga, isto é, indicativa. Isto implica um uso completamente novo de nossos conceitos. Enquanto inteiramente relacionado a Deus o mundo é semelhante a ele (por essa razão podemos, por meio da via afirmativa, fazer afirmações positivas em relação a Deus); enquanto inteiramente diferente dele o mundo, justamente em sua semelhança, é, ao mesmo tempo, dessemelhante a ele (por isso refutamos, por meio da via negativa, qualquer limitação mundana quanto a Deus). E justamente porque seu ser inteiramente relacionado a Deus é unilateral, não pode ser afirmada qualquer semelhança na direção inversa (nisso se fundamenta a via da eminência: se atribuímos a Deus a plenitude do ser absoluto e infinito, mesmo assim, permanece como que nada em comparação a ele mesmo). Por causa da unilateralidade da semelhança é que se distingue a concepção cristã de Deus de qualquer projeção. Já o Concílio Laterão IV ensinou que “não pode ser afirmada nenhuma semelhança entre criador e criatura, sem que haja de ser afirmada dessemelhança ainda maior entre eles” (DH 806).


A unilateralidade da relação de todo ser criado a Deus, afirmada por Tomás, não somente se opõe completamente ao nosso imaginário espontâneo, mas, olhando mais de perto, ela se revela praticamente como a objeção mais grave à fé cristã, na qual se trata sim da nossa comunhão com Deus. Por isso, tal doutrina é ignorada e desconsideradamente rejeitada de antemão, muitas vezes, justamente por teólogos e justamente porque tanto querem a fé.


Não é assim que falar em unilateralidade da relação real de todo ser criado a Deus questiona tudo aquilo que a mensagem cristã ainda afirma ademais? Como se pode ainda falar da Palavra de Deus ou até da comunhão com Deus? Em todo caso, as duas coisas não são mais “evidentes” no sentido de entendê-las sozinho.

 Supõe-se que apenas a partir desta consideração se possa compreender a pergunta aparentemente desesperada que está na raiz da teologia de Martin Lutero: “Como obtenho um Deus misericordioso?” O direito a essa pergunta se baseia em que a unilateralidade da relação real do ser criado a Deus, afirmada por Tomás, parece excluir, à primeira vista, qualquer comunhão real com Deus. Nenhuma qualidade criada é suficiente para fundamentar a comunhão com Deus. Pois comunhão com Deus deveria consistir numa relação mútua.

II.   A mensagem cristã se evidencia por si mesma como “Palavra de Deus”

A mensagem cristã entende a si mesma como a maneira de Deus nos falar, e isto significa dizer, ao mesmo tempo, que ele está voltado para nós cheio de amor. É pelo seu conteúdo que a mensagem cristã explica como ela mesma, de fato, pode ser Palavra de Deus e, dessa maneira, agora ser manifesta relação amorosa de Deus para conosco.

1) A mensagem cristã reconhece, de um lado, que o mundo criado funde totalmente em uma relação - justamente devido a essa totalidade - unilateral a Deus. O mundo não pode, para além dessa sua condição, ainda ser o termo constitutivo de uma relação de Deus a ele. Por outro lado, a mensagem cristã afirma que há, sim, uma relação de Deus ao mundo que, no entanto, não tem o mundo como seu termo constitutivo. Antes, Deus é voltado para o mundo com aquele amor com o qual Ele é voltado a Deus desde toda eternidade, a saber, como Pai para Filho.


Segundo a mensagem cristã apenas é possível afirmar uma relação real de Deus ao mundo sob condição dela ser de realidade divina e não criada. Ela há de ser afirmada como uma relação que existe em Deus desde a eternidade e na qual o mundo foi criado. Esse amor do Pai para com o Filho, no qual o mundo é assumido, é o Espírito Santo. Ele é eterno e intranscendível.


Na Trindade divina, isto é, que em Deus há três autopresenças diferentemente mediadas entre si, a mensagem cristã justamente fala (nota-se: somente com conceitos análogos) para sequer poder afirmar uma relação de Deus para com o mundo, uma relação que, por sua vez, não tem o mundo como sua medida nem depende de quaisquer condições.


2) Uma relação de Deus para com o mundo, agora, não pode ser deduzida a partir do mundo. Mas como podemos, então, saber dela?


A essa pergunta a mensagem cristã igualmente responde, num segundo passo, pelo seu conteúdo. Precisa-se da Palavra. O que não é dedutível do mundo há de ser dito de fora a ele.


A mensagem cristã recorre à encarnação do Filho. O Filho de Deus assumiu natureza humana para nos poder dizer na palavra humana que participamos de sua relação com o Pai. Esta é a razão mais profunda da encarnação.


Crer em Jesus como Filho de Deus, portanto, significa ter certeza, por causa de sua palavra, que o amor de Deus por ele é, ao mesmo tempo, o amor com que nós somos acolhidos. Esta frase é a síntese de toda a fé cristã, na qual são implicadas simplesmente todas afirmações cristãs de fé de antemão:


Saber-se amparado nesse amor de Deus, que é o amor entre o Pai e o Filho, significa a libertação do poder do medo que se tem por si próprio. Pois se Deus é aquele sem quem nada é, então, ele é poderoso em tudo o que acontece. Por essa razão, nenhum poder do mundo jamais empata a comunhão com ele. Nem sequer a morte é capaz de nos arrancar da comunhão com Deus (cf. Rm 8,38s).


Essa comunhão com Deus há de ser transmitida numa palavra humana que se refere a Jesus como sua origem. Para elucidar isto a mensagem cristã diz: o homem Jesus, com sua autopresença humana, é criado no interior daquela autopresença divina que constitui a segunda pessoa em Deus. Dessa forma ele pode falar para nós, seres humanos, e dizer-nos o que Deus quer nos dizer.


A morte de cruz de Jesus há de ser compreendida como martírio em conseqüência de sua mensagem. Jesus foi crucificado porque encontrou seguidores de sua mensagem. Por essa razão foi questionado o poder daqueles que, por meio do medo, pretendiam tornar outras pessoas instrumentos de sua desumanidade. A redenção consiste em que pessoas se tornam fieis no sentido da entrega a Deus por causa de sua mensagem que Jesus testemunhou pela sua vida.


Na afirmação de que Jesus não apenas tem sido o Filho de Deus e sim o é em eternidade, está incluída, desde já, perante a morte, a fé na ressurreição.


3) Num terceiro passo, a mensagem cristã explica que a fé mesma não é mera concepção de mundo [alemão “Weltanschauung”; obs. do tradutor] e sim o estar repleto do Espírito Santo. Ninguém é capaz de ter essa fé por esforço próprio; nós apenas podemos acolher a mensagem cristã na fé porque nós somos, de forma encoberta (= não é dedutível no mundo), de antemão criados no amor do Pai para o Filho. Ninguém é capaz de acolher a graça de Deus se não já se encontra nela, mesmo antes que ele mesmo saiba disso. Desde seu início, o mundo inteiro é criado em Cristo como afirma o credo. Por isso mesmo, também não há nenhum homem fora da graça de Deus, mesmo se ela ainda fique encoberta para muitos.


A Igreja é o evento contínuo da transmissão da Palavra de Deus. A esse evento pode ser atribuído tudo que é relevante para nossa salvação. O fato da Palavra de Deus ainda ser dirigida a nós hoje é evento atual da autocomunicação de Deus na palavra da comunicação humana do anúncio de fé.


A função dos ministros na Igreja consiste em representar, que a fé provém “do ouvir” (Rm 10,17), isto é, deriva da comunicação humana da transmissão da Palavra de Deus, não só para cada um em particular e sim que isso vale dizer também de todos juntos. Os ministros atuam “in persona Christi capitis”, quer dizer, a partir da cabeça em função do corpo todo. Sua atuação diz respeito à comunidade toda como um todo. O sacerdócio ministerial é serviço à intranscendentabilidade do sacerdócio comum de todos os fieis. Ele expressa que também a fé de todos juntos ainda provém apenas do ouvir. Em relação a si mesmo também vale dizer que, cada ministro, para sua própria fé, precisa receber a Palavra de Deus de outras pessoas. Ninguém é sacerdote para si próprio.


Os sacramentos se distinguem da Palavra de Deus, que é para ser anunciada em todos os lugares, pelo fato de serem doados apenas dentro da comunidade dos fieis. Aqueles são “os sinais da Palavra de Deus acolhida”. Dessa forma, são um sumário daquilo que se trata já no anúncio da fé: da nossa comunhão com Deus por meio de Cristo no Espírito Santo. A graça contida e transmitida pelos sacramentos não se restringe aos mesmos. Todos os sacramentos se referem para além de si próprios à abrangência da Palavra de Deus que se dirige a todos os homens. É exatamente nisso que consiste sua dignidade.


Da comunhão com Deus emergem boas obras. Porém, não são os frutos que tornam boa a árvore e sim apenas uma árvore boa traz bons frutos. É por isso mesmo que o lema hoje indevidamente debatido da “justificação apenas pela fé”, na realidade, significa uma “palavra de ordem para boas obras” (Gerhard Ebeling): apenas aquelas obras podem ser boas diante de Deus que emergem da comunhão com ele. Nesta compreensão, as boas obras não servem à vã tentativa do ser humano de justificar a si mesmo, e sim não tem mais outro objetivo senão aquele para que realmente são boas, a saber, servir ao bem de nossos próximos.


Nossa participação da relação de Jesus com Deus também é o sentido único de toda a Sagrada Escritura. Apenas nesse e não em outro sentido qualquer a Sagrada Escritura é Palavra de Deus. Ela possibilita a transmissão da fé, atual em cada época como também a de hoje. Estritamente falando a Bíblia não é Palavra de Deus enquanto Bíblia e sim enquanto Bíblia interpretada e anunciada (Gerhard Ebeling). Palavra de Deus no sentido explícito é a autocomunicação de Deus por meio da transmissão da fé sempre atualizada. Palavra de Deus é quando uma mãe transmite a fé ao seu filho. “Tradição” entendida assim é do que se trata na Bíblia. Ela não acrescenta nada à Bíblia, mas é somente nela que a Bíblia vigora enquanto “Palavra de Deus”. A Bíblia entendida enquanto “Palavra de Deus” é a última palavra sobre toda realidade do mundo à qual ninguém pode acrescentar mais nada.


Já a Escritura de Israel afirma na fórmula da Aliança, “vocês serão meu povo e eu serei o Deus de vocês” (Jr 11,4 e o.), comunhão dos seres humanos com Deus. Mas é a mensagem cristã que explica: Essa afirmação revela seu sentido pleno e definitivo apenas quando lida à luz de Cristo. Comunhão com Deus somente se torna possível de tal modo que os homens sejam acolhidos numa relação de Deus para com Deus; e essa afirmação só pode ser verdadeira se o orador originário dela é, simultaneamente, verdadeiro homem e verdadeiro Deus.


Inclusive Abraão havia de ser acolhido no amor de Deus para com Deus se devia ter comunhão com Deus (e, por Deus ser um Deus dos vivos, continua tendo). Nada mais é revelado por meio de Jesus senão que Deus criou este mundo nesse amor desde o início. “Porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra...; tudo foi criado por ele e para ele. É antes de tudo e tudo nele subsiste” (Cl 1,16s). “Antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8,58).


Por essa razão, mesmo antes da encarnação do Filho, todo altruísmo verdadeiro entre os homens se baseia na comunhão com Deus já existente, mesmo se ainda não pronunciada plenamente. Se tais homens se deparam com a mensagem cristã e esta é explicada sensatamente a eles, então é explicitamente revelado, para a sua alegria, que já desde o início “suas obras são feitas em Deus” (Jo 3,12).


Inclusive, dentro de tal ótica, a frase ”fora da Igreja não há salvação” também não exclui mais outros seres humanos dessa salvação. Ela, antes, quer dizer: não há outra salvação senão aquela anunciada pela Igreja. Mas esta salvação já abrange o mundo todo e só falta ser revelada pala palavra que há de ser transmitida. Nossa mensagem diz: “Deus nos reconciliou consigo por Cristo.” Os fieis têm para os outros o “ministério da reconciliação” que consiste em não poder fazer outra coisa senão transmitir a “palavra da reconciliação”: “Em nome de Cristo suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus” (2 Cor 5,18-21).


A intervenção de Deus no nosso mundo consiste na sua autocomunicação pela palavra da comunicação humana da transmissão da fé. E a nossa redenção consiste em tornarmo-nos fieis.

 

III.   Teologia-da-Palavra cristológica

As reflexões anteriores já mostraram que o conteúdo da mensagem cristã não é um tipo de armazém de afirmações a serem somadas que precisam ser juntadas de forma “completa” para, apenas a partir daí, formarem um todo harmônico.

Possivelmente, este mal-entendido é a razão pela qual muitos cristãos têm dificuldades de reconhecer sua união já existente na fé. Em conseqüência disto se supõe, por exemplo, que carece de uma fé plena quem não se apropria explicitamente de todas as sentenças singulares de fé da Igreja católico-romana.


No entanto, não é a soma de partes que constitui o conteúdo da fé e sim o desdobramento do fato crido da nossa comunhão com Deus que não pode ser fundamentada por nenhuma qualidade criada; nele todas as sentenças de fé singulares são implicadas de antemão e podem ser compreendidas somente a partir daí.


Que Deus se dirige a nós somente pode ser afirmado trinitariamente: o amor de Deus por nós é o amor do Pai para o Filho, amor esse que é o Espírito Santo e no qual somos acolhidos. Isso podemos reconhecer apenas por meio da encarnação do Filho. Não é legível no mundo e por isso precisa ser dita a nós por meio de uma palavra humana. A verdade dessa palavra, porém, é divina. Ela somente é reconhecida na fé que é o estar repleto do Espírito Santo. Por isso vale o que a Teologia Reformatória formula corretamente: somente Deus vem ao nosso encontro somente na palavra à luz da fé somente.


Agora vamos nos debruçar particularmente sobre a cristologia. Entre a mensagem cristã enquanto a “Palavra de Deus” e a realidade de fé Jesus enquanto “Filho de Deus” existe um paralelo estrutural completo.


Ao ser humano de Jesus corresponde o caráter verbal da mensagem cristã; ao ser divino de Jesus corresponde o fato de que a verdade da mensagem cristã é divina e isto exatamente no sentido da autocomunicação divina dessa mensagem.


Em analogia à união de corpo e alma do ser humano, a palavra é uma unidade de som e sentido. Por meio desta última se pode esclarecer o que quer dizer união de corpo e alma. Como o sentido de uma palavra se expressa no seu corpo sonoro, no som, da mesma forma o faz a alma do ser humano no seu corpo. Também só existe palavra, em última instância e originalmente, apenas enquanto comunicação entre seres humanos como também só existem seres humanos em conexão com outros seres humanos; eles nascem de outros seres humanos e aprendem a falar por meio deles.


Tanto o som como o sentido de uma palavra são acessíveis a qualquer pessoa. Podem ser constatadas como existentes por qualquer pessoa. Coisa parecida vale em relação ao ser humano Jesus. Como qualquer pagão pode constatar a existência da mensagem cristã, do mesmo modo Pilatos pôde, sem fé nenhuma, reconhecer sem problema o verdadeiro ser humano de Jesus. O ser humano de Jesus é acessível à pesquisa histórica ainda hoje, tanto como a existência da mensagem cristã.


Em relação à palavra não se trata apenas de distinguir entre som e sentido e sim há de se perguntar pela pretensão de verdade da mesma. Esta, a verdade, é a subsistência última da palavra. O que é a verdade na palavra, em analogia ao ser humano é seu ser pessoa. Se é que à palavra da mensagem cristã merece ser atribuída verdade divina, segue-se que o orador originário dessa palavra deve ser divino quanto a seu ser pessoa.


Enquanto que a existência da mensagem cristã pode ser constatada por qualquer pessoa, sua verdade, entretanto, não se reconhece trivialmente [alemão “weltanschaulich”; obs. do tradutor] ou de modo meramente filosófico e com argumentos da razão; mas sim ela apenas é acessível àquela fé que não é visão do mundo e sim o estar repleto do Espírito Santo. Da mesma forma, também a filiação divina do orador originário dessa palavra apenas é acessível no Espírito Santo. “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor’ a não ser no Espírito Santo” (1 Cor 12,3).


O dogma cristológico geralmente é designado de ”doutrina das duas naturezas”. Nós dizemos que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Da mesma forma, também a mensagem cristã é, enquanto palavra, verdadeiramente humana e, na sua verdade, plenamente divina. No entanto, quanto à doutrina das duas naturezas, é crucial que ser Deus e ser homem em Jesus não existem “nem misturados um com o outro nem separados um do outro”. A mesma coisa vale dizer da palavra da mensagem cristã e de sua verdade.


Ser divino e ser humano permanecem completamente diferentes um do outro em Jesus (= sem mistura); o ser divino não é o ser humano e também não é “legível” no ser humano de Jesus, como por exemplo a partir de sua altura ou da estética de sua aparência ou da melodia harmônica de suas palavras, e nem a partir de seu ser masculino.


Se o ser divino de Jesus fosse “legível” no seu ser humano, então, “não teriam crucificado o Senhor da Glória” (cf. 1 Cor 2,8).


Por outro lado, porém, não é assim que o ser divino é “separado” do ser humano de Jesus. Este é, antes, vinculado àquele através de uma relação do ser divino para consigo mesmo (autopresença divina como segunda pessoa), na qual o ser humano é inserido. Falamos da “união hipostática” porque a segunda relação da autopresença divina, que é o Filho, vincula ser Deus e ser homem em Jesus.


Os conceitos “sem mistura” e “sem separação”, de modo algum, são conceitos-limites de cunho meramente negativo, em relação aos quais nem se pode denominar o que se quer dizer positivamente. “Sem mistura” significa: “diferentes entre si”; “sem separação” significa: “conectados entre si” por meio da relação de uma autopresença divina.


Somente a partir dessa concepção é evitada a confusão da fé cristã com uma concepção mitológica. Mitológica seria a subordinação de Deus e do mundo ao mesmo conceito de realidade de tal modo que se poderia demonstrar o agir divino no mundo de forma mundana.


A mesma coisa se pode esclarecer por meio do conceito de “Palavra de Deus”. A verdade da palavra não é misturada à palavra nem separada dela.


Mistura significaria poder deduzir a verdade da palavra de suas características, como, por exemplo, pelo modo de ser pronunciado alto, harmônico ou bem formulado. Mas aqui vale dizer que a “Palavra de Deus” enquanto palavra é “igual em tudo” a qualquer outra palavra humana; mesmo quem gagueje ou esteja rouco pode pronunciar e transmitir essa palavra com palavras próprias. Porém, em contraste a qualquer outra palavra, essa palavra é incondicionalmente confiável; ela fala de algo que acontece nela mesma e é, portanto, necessariamente “verdadeira a partir de si mesma”, se é que pode ser entendida mesmo como autocomunicação divina. Ela é reconhecida como Palavra de Deus apenas na fé, mas ela não é constituída como Palavra de Deus pela fé.


A verdade da Palavra da mensagem cristã não é, no entanto, separada da palavra se bem que diferente da constatação da existência da palavra. A verdade da Palavra não pode ser conhecida por nenhuma mediação senão pela palavra, embora aquela não seja legível nesta.


Consequentemente, à cristologia há de corresponder a eclesiologia. Muito semelhante à relação da palavra com a verdade da palavra e à relação do ser humano com o ser divino de Jesus também é a relação entre Igreja “visível” e “invisível”: enquanto “instituição” a Igreja é visível pelo fato dela transmitir a mensagem neste mundo que pretende ser entendida como autocomunicação divina e à qual não se pode fazer justiça comprovadamente a não ser nesse sentido. Que sua mensagem seja verdadeira e que a própria Igreja está repleta do Espírito Santo, na medida que transmite essa verdade, apenas é cognoscível na fé, de forma alguma, é legível na realidade criada.


Em relação à objeção que tal embasamento numa Teologia da Palavra de Deus não corresponderia suficientemente ao destaque cristão da corporeidade e, com isso, à importância dos sacramentos, seja respondido que dependemos do ouvir sensível e corporal para podermos perceber a palavra (cf.1 Jo 1,1), e que os sacramentos apenas podem ser entendidos como os sinais da Palavra de Deus por nós acolhida.


Aos referidos “dogmas principais” da mensagem cristã, a saber, o falar na Trindade divina, na encarnação do Filho e no envio do Espírito Santo, estão intimamente vinculados todas as demais sentenças de fé. Elas apenas são os desdobramentos dos dogmas principais e nada podem acrescentar a eles.


Que Jesus tenha testemunhado sua mensagem com a vida é historicamente acessível. Nisso ele é “em tudo igual a nós (menos no pecado)”. Mas, em que medida sua mensagem era e é verdadeira e em que medida ele mesmo era e é o Filho de Deus, isso, porém, somente é conhecido por meio de sua palavra e somente na fé. Portanto, em relação ao Jesus histórico fazemos afirmações que, por sua vez, não são de natureza histórica, mas que entendemos como realidade divina; elas podem ser conhecidas como verdadeiras apenas na fé. Afirmamos em relação ao Jesus histórico que ele vive e nos aparece ainda hoje em Palavra e sacramento. Tudo isso, e com isso sua ressurreição, são conhecidos somente na fé. Mas essa é a ressurreição desse homem histórico.


Em analogia a isso há de se dizer que a Palavra da mensagem cristã em tudo é igual a qualquer outra palavra comum, mas justamente assim é portadora da verdade divina.


Dessa forma se demonstra que a análise do significado de “Palavra de Deus”, num paralelo estrutural, pode ajudar a entender todas as afirmações básicas da cristologia e também até da eclesiologia. Trata-se do único e mesmo mistério de fé se cremos no homem Jesus como verdadeiro Deus e a palavra humana da mensagem cristã como afirmação de verdade, divina. A encarnação do Filho não é um mistério de fé maior ou menor do que o caráter de Palavra de Deus da mensagem cristã.


Esta é a fé cristã inteira que não permite ser aumentada ou diminuída. O testemunhar hodierno dessa fé é o “testemunho vivo” repleto do Espírito Santo.

 


Posfácio:

Na homenagem escrita na qual o artigo de cima é publicado, segue um artigo de Karl H. Singer entitulado “O encontro de Deus com o ser humano no Corã – exemplificado no envio de Moisés ao faraó”. (Singer, Karl H. Die Begegnung Gottes mit dem Menschen im Koran – Dargestellt an der Sendung Moses zum Pharao. in: Risse, Günther [org.]. Zeitgeschichte und Begegnungen – Festschrift für Bernard Neumann zur Vollendung des 70. Lebensjahres [História do tempo e encontros – homenagem escrita para Bernard Neumann por completar 70 anos de vida], Paderborn: Bonifatius, 1998, 195-205.)

A razão da condenação (e execução) de Ibn Dirham, relatada nesse artigo, tem sido o problema apresentado sob item I do artigo de cima. Consta na p. 200:

“Porém, pertence à essência do profeta, que ele, apesar de momentos de depressão profunda, está convicto de sua missão e dispõe de certeza interna que a mensagem de Allá vencerá. [...]”.

No entanto, na teologia islâmica foi posta em dúvida a possibilidade de um encontro do ser humano com Allá. Assim, Dja Ibn Dirham - ele viveu no tempo do último Omajjad Marwan II. (744-750 d.C.) – se diz ter afirmado que Deus não falou nem para Moisés nem para Abraão, pois a transcendência de Allá não admitiria um contato entre divindade e humanidade. Por isso, Abraão também não poderia ter sido amigo de Deus e Allá também não poderia ter falado para esse e Moisés (
Cf. Tilman Nagel.Geschichte der islamischen Theologie [História da Teologia Islâmica]. München 1994, 102; cf. Ibn Dirham in: The Encyclopaedia of Islam, Vol. III, Leiden-London 1986, 474).
.
Porém, essa posição teológica, que considera, já de princípio, impossível uma revelação divina, sempre foi rejeitada e levou à condenação de Ibn Dirham.
Uma revelação divina por meio de sua Palavra – revelação sobrenatural – e, com isso, um encontro com o ser humano que foi escolhido para isso, portanto, é convicção comum de cristãos e muselmanos.




[Zurück zum Beginn] [Zurück zur Bibliographie von Peter Knauer]